sábado, 29 de junho de 2013

Insônia

A filosofia da rua: do mendigo, da puta, do cigarro, do dinheiro, da cocaína, da besta, das massas, dos cantos, do bêbado, da viela, dos puteiros, dos dementes, dos sãos, dos trilhos, das rodas, dos niilistas e dos iluminados. Tem um ar... às vezes falta o ar. Respirar fundo, o pouco que fica, de olhos fechados e garganta dilatada. O engasgo, o ócio, a música, o espelho, o vácuo, o teto. Cigarro, cigarro.




Imagem: autor não identificado, adaptação de 'A grande onda de Kanagawa', de Hokusai. 

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Multitude

Uma menina no meio da multidão é um bicho de sete multidões.

Cinco mil pessoas na multidão são a vibração caótica e desafinada do coro disperso.

Cem mil pessoas na multidão são orgia telepática.

Sete bilhões de pessoas na multidão são o mundo esquizofrenético.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Engasgo

"Mas se a noite vier
cheia de luzes ilegíveis de véus
de relógios parados - ergue as asas
fere o ar que te sufoca e não te mexas
para que eu fique a ver-te estilhaçar
aquilo que penso e já não escrevo - aquilo
que perdeu o nome e se bebe como cicuta
junto ao precipício
e à beleza vertiginosa do teu corpo."






Imagem: 'Vertigem', Delira. 

Texto: adaptado de  Al Berto

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Os marinheiros saíram pro sono e os ratos tomaram conta do sonho

- Régis, meu bem, saia do caminho e não me atormente. O lugar está cheio de ratos! Eles saem por todos os lados, você não vê? Saem das mesas, dos sofás e das paredes; saem das nossas roupas e dos nossos cabelos... eles tomaram nossa alma, Régis. Para de rir e escuta: os ratos tomaram tudo. Olha só: acostumaram com eles, as mulheres não gritam de horror; olham-se no espelho de vez em quando para ver se não há nenhum bicho asqueroso escorregando pelos cabelos. Os homens nem se manifestam; cultivam seus vícios e os asquerosos comem as flores; eles não se importam. Só se dispersam, para dar lugar aos ratos. Olha aquela mulher, aquela ali de vestido curto. Saiu um rato da calcinha dela, viu? Ele certamente vai acasalar com o rato da cueca de alguém.



Imagem: 'Rat', Banksy. 

sábado, 22 de junho de 2013

Almoço do governador

Traga-me uma cabeça de ideia. E uma salada dialética.
Mais cabeças, por favor! Cruas. Sangrando. Aliás, traga-me os animais que os dilacero com os dentes; arranco-lhes as tripas agonizantes como se escova o cabelo.
Para a sobremesa, um fresco e doce cadáver canibal de si mesmo.
A conta ao Estado, tenha a delicadeza.


http://m.letras.mus.br/pink-floyd/67051/traducao.html
 

Imagem: 'Saturno devorando a un hijo', Goya.

Da solidão

"É um lugar solitário, este. Mas acho que tem coisas que só podem ser feitas daí. Sabe?"

Sei?


"Onde não existe o medo, está a beleza — não a beleza de que falam os poetas, aquela que os artistas pintam etc., porém coisa bem diferente. E para descobrir a beleza, um homem terá de conhecer esse isolamento completo — ou, melhor, não terá de conhecê-lo, pois ele já existe. Vós fugistes dele, mas ele continua existente e vos segue sempre. Ele lá está, em vosso coração e em vossa mente, nos mais profundos recessos de vosso ser. Vós o encobristes, fugistes dele; mas ele continua existente. E a mente tem de passar por ele, como quem se submete à purificação pelo fogo."
 
"Por isso, caro senhor, ame a sua solidão e suporte a dor que ela lhe causa com belos momentos. Pois os que são próximos do senhor estão distantes, é o que diz, e isso mostra que o espaço começa a se ampliar à sua volta. Se o próximo está longe, então o que é distante vaga entre as estrelas, na imensidão."

"A solidão é a regra. Ninguém pode viver em nosso lugar, nem morrer em nosso lugar, nem sofrer ou amar em nosso lugar. É o que chamo de solidão: nada mais é que outro nome para o esforço de existir."

"Fui para o bosque porque pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os fatos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que ela tinha a ensinar-me, em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido. Não desejava viver o que não era vida, sendo a vida tão maravilhosa, nem desejava praticar a resignação, a menos que fosse de todo necessária. Queria viver em profundidade e sugar todo o tutano da vida."

"Eu poderia viver preso numa casca de noz e me sentir rei de espaços infinitos, não fossem os maus sonhos que tenho."

"Acordei com o sol rubro do fim de tarde; e aquele foi um momento marcante em minha vida, o mais bizarro de todos, quando não soube quem eu era - estava longe de casa, assombrado e fatigado pela viagem, num quarto de hotel barato que nunca vira antes, ouvindo o silvo das locomotivas, e o ranger das velhas madeiras do hotel, e passos ressoando no andar de cima, e todos aqueles sons melancólicos, e olhei para o teto rachado e por quinze estranhos segundos realmente não soube quem eu era."

“...como admirava, então, aquelas enevoadas tardes de outono ou de inverno! Como respirava, ansioso e embevecido, a sensação de isolamento e melancolia, quando, noite adentro, enrolado em meu capote, atravessava as chuvas e tempestades de uma natureza hostil e revoltada, e caminhava errante, pois naquele tempo já era só, mas ia repleto de profunda satisfação e de versos, que mais tarde escrevia, em meu quarto, à luz de uma vela, sentado à beira da cama.
Como não haveria de ser eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio a um mundo cujos objetivos não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! (...) E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.”

"Em primeiro lugar, eu não podia mais apaixonar-me, porque, repito, amar significava para mim tiranizar e dominar moralmente. Durante toda a vida, eu não podia sequer conceber em meu íntimo outro amor, e cheguei a tal ponto que, agora, chego a pensar por vezes que o amor consiste justamente no direito que o objeto amado voluntariamente nos concede de exercer tirania sobre ele. Mesmo nos meus devaneios subterrâneos, nunca pude conceber o amor senão como uma luta. Começava sempre pelo ódio e terminava pela subjugação moral; depois não podia sequer imaginar o que fazer com o objeto subjugado. E o que há de inverossímil nisso, se eu já conseguira apodrecer moralmente a ponto de me desacostumar da “vida viva”, e haver tido a idéia de censurar Liza, de envergonhá-la com o fato de ter vindo a minha casa para ouvir “palavras piedosas”; mas eu mesmo não adivinhara que ela não viera absolutamente para ouvir palavras de piedade, mas para me amar, pois para a mulher é no amor que consiste toda a ressurreição; toda a salvação de qualquer desgraça e toda regeneração não podem ser reveladas de outro modo. Aliás, eu não a odiava tanto assim quando corria pelo quarto e espiava pelo biombo, através de uma pequena fresta. Dava-me apenas um sentimento insuportavelmente penoso o fato de que estivesse ali. Queria que ela sumisse. Queria “tranqüilidade”, ficar sozinho no subsolo. A “vida viva”, por falta de hábito, comprimira-me tanto que era até difícil respirar."
 
"O mundo assim como está não é suportável, por conseguinte, preciso da lua, da felicidade ou da imortalidade, de qualquer coisa que seja loucura, talvez, mas que não pertença a este mundo."



Imagem: 'Sugar Sphinx', Dalí.  


Textos de  Krishnamurti, Rilke, Comte-Sponville, Thoreau, Shakespeare, Kerouac, Hesse, Dostoiévski e Camus, respectivamente.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Wine philosophy

O que é a imagem, para quem não a tem? Como um cego de nascença pinta cores?
Disseram, certa vez, "que mente imagética você tem!". Se o que acho mais válido do sol é o alaranjado quente do crepúsculo e o amarelo! do meio dia, de que adianta saber a quantos anos-luz está da Terra? Quando eu, reles corpo, sentirei (mais que saberei) o que é um ano-luz? Há coisas que se sabem, other things you just guess at, como diria Laurie Anderson.
Sinto o torpor do vinho, sinto frio, sinto o meu quarto mais quente que o resto da casa, sinto a pulsação da minha vontade, sinto desejos. Essa é a maldição e o êxtase da alma feminina: não se passa impune pelos sentimentos e desejos, como uma árvore não passa impune pelo outono.
Many is a word that only leaves you guessing.



 Imagem: Eu sou aquela flor solitária,Delira. 

Surrealité

As belezas orbitam a estrela da tua existência. Ao teu redor está o mundo que enfrentas: a lama caótica do pensamento teórico, o cio desavisado e agressivo das massas com seus prazeres; a orgulhosa histeria vingativa; a condescendência pseudo-budista e egoísta; todo o nonsense e toda a glória do absurdo : um grande coração prestes a ter um ataque. Um cérebro espasmódico, aos trancos, curtido. Pernas desvairadas. Boca abissal. Um monstro kafkiano, enfim.
A solidão é o teu núcleo, teu epicentro vulcânico. 
Todas as belezas te pertencem e te orbitam.

É o levante da Koyaanisqatsi

"Creio que eu poderia transformar-me e viver como os animais. Eles são tão calmos e donos de si! Detenho-me para contemplá-los sem parar. Não se atarantam nem se queixam da própria sorte; não passam a noite em claro, remoendo suas culpas, nem me aborrecem falando de suas obrigações para com Deus. Nenhum deles se mostra insatisfeito; nenhum deles se acha dominado pela mania de possuir coisas; nenhum deles fica de joelhos diante de outro, nem diante da recordação de outros da mesma espécie que viveram há milhares de anos. Nenhum deles é respeitável ou desgraçado em todo o amplo mundo."
(Whitman)


Entre os animais, não há Koyaanisqatsi. Tudo é equilíbrio; a exata natureza de tudo; a medida da necessidade. São justos, sem condescendência. Ativos, sem frenesi. Vivem na medida em que lhes cabe a vida.
Ao homem é dado o fascínio da transcendência - que tem se perdido em gritos vazios, em violência existencial.
Pensar não é discordar, é saber chegar sem ser conduzido.




Imagem do filme Koyaanisqatsi.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Embaixo da árvore

Perto da praça, perto da figueira. Um acaso, uma coincidência, um Cosmo unindo duas pontas de uma reta. Um azul chegando perto e tornando tudo brilhante. Um coração gigantesco de azul incandescente.
Distância é nada, coração é tudo.




 


Imagem: figueira centenária em Floripa.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Esta Mira

Este é o mundo dos espertos ao contrário. Compram comida na farmácia, comida estimulante; compram memórias prontas nas lojas de eletrônicos; compram móveis podres embaixo da ponte; compram palavras a preço de drogas, com os traficantes do sentido. A verdade, não... essa está próxima da loucura, e loucura não é negociável.

A droga mais perigosa  é a verdade por trás da loucura; a mente nunca mais será a mesma.

 Os olhos crescem até orbitarem a universo; as mãos fazem malabarismo com o tempo; a boca sente o fedor da maldade. A cópula louca dos espaços não cria santos nem demônios, e a família cristã não domestica o vício. "Pinot Noir honesto e silêncio, sem preço." Um discurso enorme sobre o valor do silêncio, sem preço. O vizinho martelando lá cima; o casal trepando no apartamento do lado; a criança berrando embaixo; os fanáticos em procissão para o inferno da ignorância... ah, o silêncio grátis.

Se você passar o dia falando em enigmas, no fim da noite terá uma epifania ou perceberá que enigmas não adiantam, não avançam, não cheiram, nem comem, nem fazem sexo. Nem nada, enigmas são nada.




Imagem do documentário Estamira.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Pédarcoíris

(ou Porque as fichas de cheerleaders são azuis)

São lindas, bem formadas, as três.
A da esquerda veio do Brasil, vasto como seu quadril. Seus cabelos dourados de sol parecem o crepúsculo em sua pele bronzeada.
A do meio parece europeia, e tem aquela cara europeia de quem não gosta de nada em nenhum momento mas aí, de repente, abre um sorriso branco com seus dentes pequenos e incisivos e fica bonita. A da direita é louca, tem um cabelo quase branco como a neve e comprido o suficiente só pra esvoaçar com o vento. Parece ter saído de uma montanha de neve russa, é toda branca; só os olhos são escuros.
Movimentam-se em seu metro quadrado com displicência, sem muito desejo. É noite, talvez precisem do sol.
Para fazer graça, a da esquerda mostra seu sapato, num gesto obsceno de vaudeville - aí há algo. Tira-o lentamente, e, mágica, aparecem suas unhas do pé. Cortadas em triângulos, pintadas uma de cada cor, enormíssimas; uns bons dez centímetros. Faz mesuras e gestos como os se tocasse uma castanhola nos pés. A do meio não se abala, tira os sapatos calmamente e lá estão: são menores, mas obviamente menos frágeis, de uma completude mais harmônica, suas unhas cortadas como um losango. As cores berrantes parecem ter sido escolhidas por uma criança, coisa esquisita numa pessoa com uma cara tão monocromática.
A da direita sorri um riso de escárnio. Tira os sapatos e saem deles as mais longas unhas já vistas, e transparentes, translúcidas como as asas de uma fada.
São esquisitas, é claro que unhas deste tamanho serão esquisitas, mas para elas é o mérito da esquisitice.
Vão preencher sua ficha de inscrição para o que quer que seja, desde que as escolham.
Depositam-lhe nas mãos fichas de papel cartão, de um azul fosco e forte que ficaria mais bonito em algo fluido como a água do mar. Examinam as fichas: todas iguais. Mesmas informações, mesmos requisitos a cumprir, nenhuma singularidadezinha só para sorrir. Rasgam as fichas, dançam ao cair de pedacinhos azuis, dão-se as mãos e vão embora, cada qual com suas unhas.