terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Flor de brisa

A fumaça, sempre fui fascinada por fumaça. A do incenso é perfumada e mística, me agrada. Ascende pesada, como querendo pregar-se a tudo, aos móveis, ao vidro da janela, ao leãozinho do incensário que a vigia tão quieto. Seus espirais são caoticos, instáveis e dançantes; bailam a melodia do vento. É etérea como um pensamento, bonita como uma flor de brisa, mais leve que o ar e presente como uns olhos que observam. É linda em seu tempo fluido de dança.



 



Imagem: 'flor de brisa', Delira.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

La belle de jour

-Leia a minha mão. Se acertares algo, sou tua.

Ele quedou-se uns segundos estupefato. Com que, então; que coisa! A garota era bonita e tinha olhos misteriosos; no fundo, não admirava que o desafiasse.
Concentrou-se. Depositou cuidadosamente a mão dela sob a sua - aquela mão plena de histórias e gestos que a ele eram desconhecidos. Fechou os olhos; tentou, de qualquer forma, absorver o seu aroma, a sua proximidade e sua pessoa. Sabia que essa mão que estava sob a sua era uma ponte, breve raio de contato, e contentava-se mesmo com essa brevidade.
De olhos, agora, bem abertos - faiscando de confusão - ele a observava, atento: as linhas de seus olhos meio oblíquos; seu ar, em geral curioso; seu riso pueril dependurado da boca, insolente. Ela esperava, terna, à sua frente, à sua espera e à disposição. O sol iluminava-lhe os cabelos, e ele mirava-se nas pupilas escuras; reconheceu um ímpeto e arriscou-se com solenidade:
-És efêmera. Uma brisa colorida, um dente de leão.
Da expressão reticente que ela replicava ele arrancou a displicência e continuou:
- ...talvez teu lampejo seja certeiro, porém. Ou, quem sabe, sejas elétrica, distribuindo raios por aí, quando pensamos que é uma tarde de sol. Eu sei lá, nem compete a meu pensamento te desvendar, afinal. Mistério é bobagem. - E, à Houdini, sacou do bolso da calça uma caneta e rabiscou seu número na palma da mão confusa. O vento bagunçava-lhe os cabelos e ela tinha um ar perplexo. -Só pra variar. - disse e despediu-se numa mesura, dando-lhe as costas, deixando um sorriso torto para trás.
"Só pra variar", ria, imaginando sua cara quando ela ligasse e descobrisse que era o número errado.





https://www.youtube.com/watch?v=718UumUnZUA


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Imagem: Pretty Muse. Mais aqui: http://beautyandthebeachphotography.blogspot.com.br/2011_12_07_archive.html

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Lua em câncer



Tanta angústia perdida no espelho
Vasto tempo espalhado em lamentos
Quantos olhos de dentro da alma

Choram o passado perdido no vento?





And the world spinning round forever
Asleep in the sand with the ocean washing over.

Do amor como uma flor



Vejo-me pelos ocasos
E um formigueiro de gente
Anda por meu coração.
Garcia Lorca




Do amor como uma flor: viçoso, forte. Cria raiz no coração. Enfeita a alma, deixa a vida feliz – é um colorido pro tempo, uma lembrança constante no fundo da memória; no começo, no meio e no fim do presente, pra além do futuro.
Tempestade atinge a flor: o vento leva embora as folhas, as pétalas e a beleza. O colorido fica opaco, ensopado de tristeza. O jardineiro chora lágrimas sentidas, derrama sua alma e adormece com a terra. Chora dormindo; rega, com seu pranto trágico, a raiz da flor. Lá dentro da terra, a raiz treme. Se fortalece. Lá dentro da terra a raiz cresce, envolve o corpo do jardineiro triste. As flores dos sonhos dele agarram-se à raiz para dar-lhe força – será outra flor, de beleza triste e sublime.


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Imagem: Cherry blossoms, Van Gogh.
Para mais trabalhos do pintor, acesse https://m.artsy.net/search?term=Van+Gogh+ (em inglês). 


Dalila

Dalila bonita
Do passo de nuvem
E alma colorida
- cadê teu regaço?

A fada felina
Perdeu-se no espaço.

Bonita Dalila
Da auréola de cachos:
Vai dançar com Deus
O teu compasso.

Manda lembranças
E diz que aqui

Ficou só breu.  

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Carta extraviada



"Assim me habituei a morrer sem ti
Com uma esferográfica cravada no coração."
Al Berto




Era tarde, tarde do sol morno de outono, frio na sombra. Ele não gosta de frio, não é envolvente. Gosta de ser abraçado pela luz quente do sol como um abraço sensual; aquela luz que nos faz ficar com olhos felinos, meio fechados, gozando do prazer do dia iluminado.

Pensava nela, sua ultima desventura. Era o oposto. Gostava do frio, pra começar. Odiava o quente dos mosquitos e se envolvia em mil cachecóis e lenços. Isso era bonito; ela tinha sempre algo esvoaçando de si. E, como um lenço que se vai com o vento, ela se foi, atrás de uma aventura mais leve e lírica. “Em algum lugar do mundo, ela está atando as mãos de algum desgraçado com seus lenços de seda, brincando com o corpo dele; aquele sorriso lânguido espiando pela fresta da cama, sabendo o exato momento em que o cristal se parte e ela se torna a única a fazê-lo sofrer”, ele conjeturava; um arrepio descendo a espinha, o mesmo que ela conhecia.

Era tarde e ele encarava seu bourbon deixado na estante, ao lado dos livros, guardião da sabedoria poética de sua biblioteca. “Ser sentimental é a ruína de um homem”, escrevera certa vez. A luz incidia na garrafa com ternura, a bebida brilhava. Serviu-se de uma dose; dentro dela multidões de homens perdidos. Mais um, ali; mais um para a estatística perversa.

Viu o carteiro passando, essa coisa anacrônica que é um carteiro. Pensou nas gerações de cartas entregues no mundo: quantas histórias seriam escritas com todas aquelas palavras? Se escolhesse mil palavras aleatórias, que sentido trariam? Abriu três livros e circulou como pôde cinco palavras em cada, olhos fechados. “Ela”, “tarde”, “vinho”, “mundo”, “lenço”... desistiu. Três vezes cinco era a conta de sua angústia.

Viu o carteiro ao longe. Sentiu-se prático e foi recolher suas contas, as cartas do diabo. Entre papéis assépticos e fonte arial com seu próprio nome gasto pelo tempo, viu uma letra de mulher. Redonda, preguiçosa, como se se deixasse escorrer no envelope. Ela tinha um nome lírico. Verificou o remetente; seus olhos marejaram de desapontamento. Era outro. Um nome duro, cheio de sílabas pequenas, sem rima. Terminou seu bourbon, arremessou o copo na parede, sentou-se, abriu conta por conta, fez somas e perdeu-se em números. Todas elas abertas na mesa, a carta sobressaía, pequena pérola na lama. Ser sentimental é a ruína de um homem, rabiscou sobre uma data de vencimento. Julgou-se merecedor de uma carta de mulher; acima de tudo, sentiu-se curioso. Não podia suportar o peso daquele envelope fechado.  Loves a minor thing and Im a minor king, cantarolava fingindo calma. Observou a página única como se não soubesse ler: a letra, menos redonda, esparramava-se pela folha com irregularidade, quase com descuido; havia umas palavras rabiscadas aqui e ali – um sinal de intimidade ou de displicência?


“Este é um lugar solitário” era a primeira frase. O sangue corria grosso em suas veias – as cinco palavras, a nostálgica sentença que repetia a si mesmo. Love's a minor thing, cantava enquanto redigia a resposta  para o erro cósmico que lhe enchia a tarde.  





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Imagem: Letters, Van Gogh

sexta-feira, 11 de abril de 2014

O tecido dos dias

"Cada cousa é o que é
E é difícil explicar a alguém o quanto isso me alegra
E o quanto isso me basta."
























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Texto: Alberto Caeiro
Imagens: Delira

terça-feira, 1 de abril de 2014

Perdidaurora

Na clara manhã dos pensamentos
Teus olhos visitam minha lembrança.
Enchem-me de tremor e ternura
E, perdida de mim, eu te observo.

Esse teu desespero mudo, esse universo
De sutil fervor que nós criamos
Não me permite mergulhar na tua alma
(Se é profunda ou rasa, desconheço).

Antes fosse ameno, fosse antes leve.
Um sorriso, um aceno e uma saudade
De uns olhos distantes e inquietos.

Antes fosse uma canção, um verso
Mas o mar que há nos teus olhos me repele
E o olho do teu furacão me joga longe.

A vida (como ela) é


Há um buraco a preencher (grandes espaços vazios dentro de nosotros, cuidados e alimentados e aumentados conforme o que tentamos colocar dentro deles). Há quem o chame de presente, os que não confiam no porvir. Há quem o nomeie futuro, os que gostam de crescer expectativas. Os nostálgicos acreditam que é nos dias passados que está sua resposta mágica de fluidez do tempo. Os românticos procuram sua metade. Os intelectuais procuram o grande conhecimento que lhes iluminará a existência. Os artistas desejam a grande beleza inominável que lhes cegará de êxtase; os distraídos querem entusiasmo para qualquer coisa nova; os práticos, uma existência graciosamente tranquila.
Onde nos cabe a humanidade, por onde escorrem os dias em que existimos?

Não posso saber a resposta. Talvez possa, com sorte, senti-la. Não espero grande coisa; Não quero tudo nomeado e categorizado dentro da existência padrão e seus respectivos termos vigentes. Quero mais é ser levada com o vento, desejar o que e como as coisas possam se oferecer a mim. 
Do amor, desejar a pele do amado perto da minha, as mãos em carícias sensíveis em sentido contrário, a boca no beijo e o nariz naquela essência específica (magnífica!) que ele tem; as palavras carinhosas e as conversas sensacionais de quem entende, escuta e considera o que o outro fala. Não é de extrema importância para a minha existência que eu tenha um parceiro (digo: posso existir sozinha, biologicamente) mas  a companhia daquele(s) de quem gosto imensamente me preenche e me dá prazer de compartilhar o que for, principalmente meu coração.  Também: amar é deixar livre, digo de novo e de novo.  
Do que é compartilhado com pessoas, com amigos, aprecio a cara de templo e o cuidado de uma, a distração da outra, a assertividade agressiva de outra ainda,  o riso desapegado do um, a fluidez-como-rio do pensamento de outra, outros ainda borboleteando, os gestos desengonçados e dançantes, os que se deixam levar pelo vento também, a inteligência aguda de todos (que me dizem por vezes que eu que sou inteligente: não, vocês levam a vida com menos angústia e nem sabem como, mas me formaram desde sempre). O que espero são momentos como deja vu, mas diferentes no sentido: ao invés de memória, a vida é que é palpável pelos risos e palavras. Mais que isso é menos necessário e menos sublime.

Aqui finco minha bandeira de existência:  sou. 








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Imagem: Delira

sexta-feira, 14 de março de 2014

O que tiver de ficar








"Escuta,
nem os fios de cabelo nos pertencem.
Eles caem
involuntariamente
quase que
sem
percebermos o
movimento
da
Queda."



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Texto: Aline Bei. Mais aqui: http://www.oitavaarte.com/2014/03/13/d-n-a-por-aline-bei/

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Dentro do grito a menina

Um grito. Vinha de dentro do sonho, de dentro dos livros e da miniatura de cavalo na estante. Saía ressonante desde seu princípio, agudo nos picos de voz; grave na impressão do tímpano; como uma impressão digital de terror cravada nas horas de calor excessivo da madrugada. Não é o primeiro; têm se seguido; gritos e gritos da voz desconhecida. Enfrentam o seu pavor ancestral, assustam os maus espíritos, cantam insanamente o poema das profundezas?
Me tiram o sono, a paz, a mansidão de um sono com Fahey aos ouvidos, tática pra ver se durmo mais, ou bem, ou durmo afinal. Me tiram o sono pra me mergulhar em sua inconsistência e efemeridade; se vão e  acordo pensando quem é que está tão desesperado.



Eu sei de onde vem: do espelho que me engana, da cara interrogativa no espelho,
do espelho maligno por trás dos meus olhos. O grito materializa o desejo de me arrastar
pra fora do meu corpo, da minha carne, da minha essência. É libertação. E quando acordo,
como voltar pro grito, sair da prisão do corpo?



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http://www.youtube.com/watch?v=7BkHaiLCV7Q










domingo, 26 de janeiro de 2014

Limbo?

O cigarro se vai,
O tédio se vai,
esvai-se o pensamento.

Acabam os ouvidos;
as mãos se enroscam.

A cabeça se engancha no momento.
O corpo se cansa da existência
pseudo-estridente
e o limbo já está cheio.





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"Quando a gente já se transformou num hábito, não pode de maneira
nenhuma transformar-se bruscamente numa revelação que submerge tudo."

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Burma é minha

Um lugar.
Áspero, intratável como um cacto: convidativo, portanto. Passagens secretas, tempestades de areia e Chandon em taças de cristal. Particularmente, prefiro o vidro em sua forma primitiva, beber da fonte. Pessoas em todos os estados. Pessoas líquidas. Gente vestida colorida e sem cor na face. Muita gente, o que é proporcionalmente igual a ninguém.







"I know what you mean about wishing somebody wasn't there, though. It's just usually it's myself that I wish I could get away from. Seriously, think about this. I have never been anywhere that I haven't been. I've never had a kiss when I wasn't one of the kissers. Y'know, I've never, um, gone to the movies, when I wasn't there in the audience. I've never been out bowling, if I wasn't there, y'know making some stupid joke. I think that's why so many people hate themselves. Seriously, it's just they are sick to death of being around themselves."

https://www.youtube.com/watch?v=YNPaKr6qzYg