segunda-feira, 29 de julho de 2013

Memorabilia

A única boneca que já tive chamava-se Dominique. Não tenho certeza de ter escolhido o nome. Tanto fazia; não era meu brinquedo preferido. Gostava da terra, da rua, do sol. No sítio de meu avô, onde normalmente passávamos fins de semana e férias, havia grutas imensas, cavernas a céu aberto. Eram enormes paredões com a sombra justa para caminhar, cheios de plantas coloridas que não nasciam no impiedoso sol da caatinga. Eram cheios de frescor e eu, passeando pequena dentro deles, sentia-me a própria líder de uma expedição. Víamos lagartos; eu era uma paleontóloga num encontro com um dinossauro. Num ponto qualquer do caminho, subia com esforço a parede de terra alaranjada e olhava ao redor - terra seca, rachada, espalhando-se a perder de vista. Bem ao longe, uma casa, um pastinho. Bichos não lembro.
Contando a alguém as minhas aventuras, sempre recebo um olhar incrédulo, de piedade até, como se fosse um quadrado de terra qualquer. Eu era um pirata, aquele era meu mar. E me vêm lágrimas aos olhos; tornam-se frescor para o sol que brilha a lembrança.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

É.

Até essa tristeza
Tem toda a beleza
De algo pungente
Que resiste
Só.
No amanhecer
das horas azuis,
No crepúsculo
Amarelo poluído
Ou no meio do dia
Distraído,
A saudade
Vai entrando
Pelas frestas,
Pelas festas
E florestas,
Pelos sonhos
E delírios,
Pelo norte
E pelo sul.
Toma toda
A minha cara,
Meus cabelos
Esvoaçam.
Minhas mãos
Tão sem abraço;
minha boca
Sem ação,
A canção
Em descompasso.



Alucidocídio

Há um tal prazer nos bosques inexplorados;
Há uma tal beleza na solitária praia;
Há uma sociedade que ninguém invade;
Perto do mar profundo e da música do seu bramir:
Não que ame menos o homem, mas amo mais a Natureza…”



 
     


Imagem: Alucidocídio, Delira

Texto: Byron 

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Garden of good and evil

Evil is in the garden
Os grandes portões de ferro
As luzes à realeza russa
Árvores amarelas, laranjas e azuis piscando
As sombras de chapéu para lá e para cá
A criança com a mangueira
Trancada no banheiro
Samba de roda
Alé aiê
A letra azul que muda de significado
De acordo com o ângulo

Daniel na cova dos leões
No jardim da alienação.




http://m.youtube.com/watch?v=9dfMd6ErTm0&desktop_uri=%2Fwatch%3Fv%3D9dfMd6ErTm0

terça-feira, 23 de julho de 2013

Da garota que entendia as palavras do avesso

"Freqüentemente, os melhores momentos na vida são quando a gente não está fazendo nada, só ruminando. Quer dizer, a gente pensa que todo mundo é sem sentido, aí vê que não pode ser tão sem sentido assim se a gente percebe que é sem sentido, e essa consciência da falta de sentido já é quase um pouco de sentido. Sabe como é? Um otimismo pessimista."








 

Imagem de Delira, texto do velho Buk. 

domingo, 21 de julho de 2013

Solidão bukowskiana

“- Escuta, alguém já te disse que se parece com outra pessoa?
- Todos nós, mais ou menos, parecemos com outra pessoa. Escuta, tem um cigarro aí?
- Claro.
Peguei meu maço.
- Por favor – ele disse –, pegue um, acenda e fume. Mantém você ocupado.”

Desconfio de quem faz questão de estar no meio da multidão. Ela não vai a lugar algum.
E a solidão parece mesmo um grande lugar para se habitar.







Imagem: 'Multitude', Delira. 

Texto: Pulp, Bukowski.  

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Inscrição

A vida me foi sempre
dúplice, angulosa.

É cordial quando nega
e escassa quando dá.

Pois escreveu meu nome
sobre uma onda cega.

E quando tenho fome
me oferece uma rosa.



 All the same, we take our chances, laughed at by Time, tricked by circumstances.        
 
Imagem:  'Melancolia', Van Gogh

Texto de Cassiano Ricardo.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Kerouac

É esse aí. Me acompanhou por uns 8km de pedal na estrada do crepúsculo nublado. Não se importou com a pouca luz da noite nascente, e sentou comigo na frente da igreja. Enquanto eu queria gritar "Ó universo, aniquilai-me de uma vez por todas!", ele se enroscava em si mesmo, na mais pacífica e protetora das ações.
Um frio na espinha; os dias com essa sensação nunca são bons. Não há sorte nenhuma no mundo, como? Quem a possui são os cães; sua vida é toda feita de suavidade e devoção.
A minha... não sei por onde começar, talvez porque nada comece nunca.






Round 'n' round
carousel
has got you under it's spell
moving so fast ... but
going nowhere.




Imagem: 'Kerouac', Delira. 

terça-feira, 9 de julho de 2013

À la Poe

Os macacos fazem ressuscitar. Era o que dizia aquele velho conto onírico psicodélico, ao menos. Na casa de D., sabiam que ele voltaria. O homem arranjara tudo desde antes de sua morte; era só por em prática. A grande casa clean vivia triste sem seu clown, por que não?
A moça e o rapaz foram atrás do macaco. Andaram pelos cantos da casa, como baratas. As madames os olhavam de esguelha, desconfiadas. No fim, resolveram com uma ligação para o além. Macaco que nada, já há telefone de almas. O clown voltou, sem piadas.  A morte o havia deixado exausto. E, no porão da casa, penduravam uma linda bebê no varal, para vê-la sorrir mesmo assim. Ela sorria um riso fraco, sem dentes e úmido; um prenúncio de desgraça que me enregela o coração.





Imagem: 'Varal dos enforcados', Ludmilla Ciuffi.  

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Feliz Aniversário, Kafka.

"Ele estava tão enredado como uma mosca presa numa teia, na angústia e opressão de seus laços - de família, do trabalho mesquinho e da própria vida que transcorria como uma gosma dentro dele -, que exprimir isso lhe surgia como uma necessidade urgente e absoluta para ter pelo menos a esperança de lavar seu cérebro daquela viscosidade de patas que se debatiam sem conduzi-lo a lugar nenhum. Mas o pior das palavras era que, quanto mais as escrevia, mais elas pareciam afugentá-lo da nitidez de um alvo. O mais engraçado - provocando nele, em seu quarto de dormir, uma gargalhada parecendo guinchos, que enregelou a família na sala - é que foi justamente no momento em que entregou os pontos, desistindo de palavras ou pensamentos profundos, que ele entendeu que para escrever o que se passava dentro dele e ao seu redor não havia outra forma senão a mais rasteira e única possível: "Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho intranquilo, viu que se transformara, em sua cama, numa espécie monstruosa de inseto."






Imagem: 'Franz Kafka', Warhol.

Texto: Sérgio Sant'Anna, aqui.