sábado, 29 de maio de 2021

Aquele 29 de maio

 

A casa com cheiro de cebola frita e incenso e meu hálito de cerveja. Ela parou, olhando da porta, medindo em quantos passos elásticos estaria no sofá. Se o cachorro deixasse, territorialista ele. Tirou o tênis e pendurou a máscara no varalzinho do lado de fora. Em tempos pandêmicos, uma declaração de confiança. Ou de loucura. Nenhuma de nós sabia qual,  não importava. Tínhamos acabado de chegar da manifestação contra o despresidente. A lua em  capricórnio, um dia em que o povo faz o que tem que fazer e exerce sua responsabilidade cívica de esmagar a cabeça de um canalha. Foi surreal, mas não surpreendente. O tiro e o atropelamento mais lindos que já vi, os mais necessários. Eu moro num país onde tiveram a coragem de atirar num presidente genocida e passar com um carro em cima da cabeça dele, em plena manifestação pró-bozo. O sangue manchando a camiseta verde e amarela que ele usava, o coração do povo pulsando vá pra puta que o pariu até nunca mais fizemos nosso dever.  Claro que muita gente foi espancada pela polícia e muitas pessoas foram presas. E todas foram com um sorriso na cara, lembrando da grande rede nacional de advogados que foi armada meses antes da operação, do dinheiro arrecadado previamente para fianças, das famílias encaminhadas numa grande rede de segurança que garantia ao menos comida e abrigo. Eu tenho certeza que naquele momento, o milésimo de segundo em que a cabeça sumiu de vista num amontoado de roda e polícia e câmeras, a nação segurou o ar e expirou num abraço aos seus entes queridos. Réu primário é maior que salvar um país? 


A vida foi devolvida. Teríamos questões adiante, a luta nunca para. Neste momento, podíamos respirar a força do sangue de um genocida morto por nossas mãos. 


Ela entrou espaçosa, as mãos deslizando nas minhas coisas: livros, porta-canetas, mesa, os margaridões que enfeitavam a sala. Pegou um, pôs no meu cabelo e me beijou: era o sol no meu corpo. A flor caiu, ela gostava de fazer carinho no cabelo enquanto beijava e eu morria de ternura. Aquela mulher que estava rouca de tanto gritar FORA GENOCIDA   estava aqui comigo, ao alcance das mãos. Um corpo tremeluzente na ponta dos meus dedos, uma montanha alta cuja escalada me deixava tonta, cujo cume dava diretamente pra lua. Pro sol, tanto faz. 


Esse dia em que ele morreu e ela me beijou foi quando comecei a morrer: a gente galga a escada pra morte no momento em que começa a viver.