sábado, 16 de novembro de 2013

O degrau de Kafka

Sobe. A ladeira do teu delírio te espera. Pensa no degrau, naquele, lembra? De onde você veio, os degraus eram bem maiores, mais estreitos, difíceis de permanência. A vista era horrível: um palco de horrores e o chicote estalando nas tuas costas, o zuup que te arrepia até hoje. Eu sei, você fecha os olhos e vê a cara de ódio com que te olhavam, ou o escárnio no canto de um sorriso cruel quando escondiam comida de você, ou a perplexidade quando você não queria passear no meio da fedida burguesia e preferia ficar com um livro em casa, e te arrastavam pelas mãos e pelo favor que te fizeram, cuspindo 'esquisita' pra tua rebeldia. Lembra quantas tardes foram acompanhadas do Artur da Távola, o salvador do teu domingo, naquelas dissertações sublimes que acompanhavam os arcos dos violinos? 'A valsa da Morte', o frio na barriga; os russos têm mesmo algo. E a mesquinharia daqueles olhos flácidos, daquelas mãos avarentas, daquele cabelo pintado cuidadosamente pra esconder a idade, de todos eles, todos. Hoje, têm uns 20 quilos a mais; vão explodir de tanto comer. Ah, os hábitos principescos que têm grotesco até na rima.
É uma nuvem, agora, de cicatrizes e nada. Quando assistisse Aos Treze e quisesse se matar, quanta ironia, quanto grito preso. Definhava, tua alma definhava mesmo, e se não se esvaiu a tua força era mesmo maior que a deles. Aí está: tinham medo da vida livre, e te proibiam de dar aos mãos pra ela e encontrar um sorriso sincero e despido de palavras hipócritas. Cruel é pouco, é. Mas te salvasse dessa.
E a tua mãe, a tua última lembrança; os vidros quebrados e as vozes; o cabelo desgrenhado e o espírito sujo. O que fizeram com tua mãe, também. As pessoas enlouquecem sozinhas, são enlouquecidas pelo próprio reflexo no espelho em neón piscando.
E a tua flor, a carne da tua carne, que está plantada em solo infértil mas tem a fragrância da persistência. É coisa mesma da tua família, persistir na lama, pensa só. Os mais inteligentes são os mais explorados, ó ironia, sobrenome do destino. As tuas três flores: uma pisada e resfolegante se recupera; uma te conhece de longe e não te acena; a última, por fim, teve um começo trágico atrás das grades. Qual tua flor decadência preferida? Elas são suficientes pra te manter de pé, ao menos.
E a raiz de onde viesse, bruta flor: um olhar árido, de águia. É o teu, também, aquele olhar que vê os percalços do caminho mas vê a beleza da terra de onde sai tudo, também. Uma boa herança, essa tua busca incansável pela beleza.
Os teus vícios e vicissitudes ficaram pelos degraus, juntando-se uns aos outros na lista mental de quem és, junto com tua perplexidade em frente ao espelho: ficarei louca?
 No teu sorriso coube dor, e cabe. Conseguisse subir a escada vacilante da tua vida até agora. Torta e pendurada, tropeçando e se arrastando pelo carpete mágico do absurdo - daí é que gostas tanto de Kafka, menina? -  e se agarrando no corrimão do fiapo da tua esperança.  Sabes que se a vida é 'cordial quando nega e escassa quando dá', há ao menos algo a ser levado, trazido, buscado e pesado com a balança do teu cérebro racional de homo sapiens dementis. 
Outro degrau, e outro e outro. Infinitos degraus, sabe. E você sobe e cai, mas não terá de começar de novo dando cabeçadas na parede ou gritos no escuro da noite ou uivos pra lua mórbida: a tua voz tá guardada num canto da tua existência, os teus cabelos escondem tua cara no vento e tuas mãos tão firmes no corrimão pouco do tempo, teus pés tão firmes mas não plantados, movimento! 

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