sexta-feira, 16 de maio de 2014

Carta extraviada



"Assim me habituei a morrer sem ti
Com uma esferográfica cravada no coração."
Al Berto




Era tarde, tarde do sol morno de outono, frio na sombra. Ele não gosta de frio, não é envolvente. Gosta de ser abraçado pela luz quente do sol como um abraço sensual; aquela luz que nos faz ficar com olhos felinos, meio fechados, gozando do prazer do dia iluminado.

Pensava nela, sua ultima desventura. Era o oposto. Gostava do frio, pra começar. Odiava o quente dos mosquitos e se envolvia em mil cachecóis e lenços. Isso era bonito; ela tinha sempre algo esvoaçando de si. E, como um lenço que se vai com o vento, ela se foi, atrás de uma aventura mais leve e lírica. “Em algum lugar do mundo, ela está atando as mãos de algum desgraçado com seus lenços de seda, brincando com o corpo dele; aquele sorriso lânguido espiando pela fresta da cama, sabendo o exato momento em que o cristal se parte e ela se torna a única a fazê-lo sofrer”, ele conjeturava; um arrepio descendo a espinha, o mesmo que ela conhecia.

Era tarde e ele encarava seu bourbon deixado na estante, ao lado dos livros, guardião da sabedoria poética de sua biblioteca. “Ser sentimental é a ruína de um homem”, escrevera certa vez. A luz incidia na garrafa com ternura, a bebida brilhava. Serviu-se de uma dose; dentro dela multidões de homens perdidos. Mais um, ali; mais um para a estatística perversa.

Viu o carteiro passando, essa coisa anacrônica que é um carteiro. Pensou nas gerações de cartas entregues no mundo: quantas histórias seriam escritas com todas aquelas palavras? Se escolhesse mil palavras aleatórias, que sentido trariam? Abriu três livros e circulou como pôde cinco palavras em cada, olhos fechados. “Ela”, “tarde”, “vinho”, “mundo”, “lenço”... desistiu. Três vezes cinco era a conta de sua angústia.

Viu o carteiro ao longe. Sentiu-se prático e foi recolher suas contas, as cartas do diabo. Entre papéis assépticos e fonte arial com seu próprio nome gasto pelo tempo, viu uma letra de mulher. Redonda, preguiçosa, como se se deixasse escorrer no envelope. Ela tinha um nome lírico. Verificou o remetente; seus olhos marejaram de desapontamento. Era outro. Um nome duro, cheio de sílabas pequenas, sem rima. Terminou seu bourbon, arremessou o copo na parede, sentou-se, abriu conta por conta, fez somas e perdeu-se em números. Todas elas abertas na mesa, a carta sobressaía, pequena pérola na lama. Ser sentimental é a ruína de um homem, rabiscou sobre uma data de vencimento. Julgou-se merecedor de uma carta de mulher; acima de tudo, sentiu-se curioso. Não podia suportar o peso daquele envelope fechado.  Loves a minor thing and Im a minor king, cantarolava fingindo calma. Observou a página única como se não soubesse ler: a letra, menos redonda, esparramava-se pela folha com irregularidade, quase com descuido; havia umas palavras rabiscadas aqui e ali – um sinal de intimidade ou de displicência?


“Este é um lugar solitário” era a primeira frase. O sangue corria grosso em suas veias – as cinco palavras, a nostálgica sentença que repetia a si mesmo. Love's a minor thing, cantava enquanto redigia a resposta  para o erro cósmico que lhe enchia a tarde.  





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Imagem: Letters, Van Gogh

2 comentários:

  1. bem, ao menos os carteiros não são tão incertos quanto as borboletas - amarelas e azuis. creio que uma camiseta listrada de amarelo e preto lhes caberia melhor !

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  2. Sim! Como singelas abelhas pousadas no ombro do tempo.

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